Entrevista com Rosely Sayão

03/04/2012 16:57

"Temos criado uma geração de crianças e jovens absolutamente anônimos no sentido de valores familiares" 
Entrevista com Rosely Sayão
17/06/2010 



 

 

 

 

 

 

ESPECIAL ESTRESSE FAMILIAR

Rosely Sayão é psicóloga há mais de 30 anos e também dá consultoria em educação. Conhecida por assinar colunas em portais e jornais de grande circulação, é autora de livros como “Sexo, prazer em conhecê-lo” e “Família - Modos de usar”.

Rosely conversou com o Projeto Criança e Consumo sobre comportamento e valores das famílias de hoje. Nesta entrevista, ela fala sobre o consumo, como os valores da sociedade afetam a criação dos filhos e a importância da escola na formação dos jovens. 

Temos acompanhado suas colunas no jornal Folha de S.Paulo e observamos que a questão do consumo vem sendo tratada com frequência. Por que esse tema se tornou tão importante nesses últimos tempos?


 
É um tema importante para a nossa sociedade. À medida que a família, na educação dos filhos, é influenciada pelos valores sociais – e o consumo tem se destacado como um valor muito importante –, é inevitável que eu tenha que abordar essa questão para que os pais se deem conta e, pelo menos, tenham condição de pensar que muitas vezes eles agem mais motivados por essa pressão social do que por valores familiares.

Os pais são os exemplos dos filhos e muitas vezes eles transmitem valores distorcidos. Quais as conseqüências que isso tem para o desenvolvimento infantil?

Acredito que não sejam valores distorcidos, porque são decorrentes da sociedade em que eles vivem. Não é a família que determina esse valor para a sociedade, mas sim o contrário: é a sociedade que determina esse valor para a família. Então, quando avaliamos o impacto, em primeiro lugar é preciso pensar que os pais estão muito submetidos às pressões sociais, por todos os lados. O consumo não se dá apenas no sentido do bem material, mas também há um consumo enorme de ideias, de ideais, do ideal de êxito, por exemplo, seja escolar ou na vida. Isso faz com que os pais trabalhem com seus filhos, na questão educativa, muito mais na perspectiva de um futuro do que na relação atual deles com seus filhos – o que traz algumas consequências. Nós não sabemos ao certo porque estamos "pagando para ver". Vamos constatar isso daqui uns 20 anos, mas já temos algumas pistas de que pode não ser bom. Temos criado uma geração de crianças e jovens absolutamente anônimos no sentido de valores familiares, ou seja, os valores de todos são os mesmos, dentre eles o consumo.


Como você disse, os pais sofrem essa pressão social e têm muita dificuldade de impor os limites. Os pais se sentem sozinhos nessa tarefa árdua de educar? Como eles podem tratar a questão do consumo com os filhos?

É preciso aliar essa pressão para o consumo com outra, que é a pressão pela rede social. As pessoas se sentem mais inseridas em um determinado grupo quanto mais gente está em torno delas. Então, os pais ficam num impasse: por um lado, eles gostariam de consumir menos, considerando valores pessoais ou de grupo. Por outro lado, eles são obrigados a aceitar a ideia, tamanha é a sua força, de que, se o filho não agir assim, não se comportar dessa maneira, ele fica excluído do grupo de seus pares. Então, eles se sentem absolutamente sozinhos e, além disso, impotentes. Há um número grande de pessoas tentando remar contra a maré. Mas eles percebem que os filhos são diferentes. A nossa questão seria hoje trabalhar com respeito à diferença, mais do que qualquer outra coisa.

E essas pessoas que têm remado contra a maré, de que forma elas têm feito isso? Como elas conseguem tratar essas questões de forma mais equilibrada?

Em primeiro lugar, elas têm muita coragem. E é preciso mesmo muita coragem porque a primeira ideia que surge é "eu vou criar um ET, que vai estar afastado da sociedade”. Estamos muito acostumados a tratar a questão, já nem digo mais no “8 ou 80”, mas no 8 ou 8 mil. Vamos de um ponto a outro: ou numa rigidez muito grande em relação ao consumo - eu conheço algumas famílias que não deixam as crianças comprarem doce ou ir a uma lanchonete -, ou no oposto, deixando que os filhos comam comida industrializada todos os dias. É possível ter parcimônia entre esses opostos, e essa é a maior dificuldade das famílias e dos pais: permitir que o filho entenda que não há mal em, de vez em quando, comer um lanche de lanchonete. A questão é o "de vez em quando", porque eles acham que se liberar uma vez tem que liberar sempre.


A inserção social passa pelo fato de ter determinados bens de consumo, como o tênis e o celular, e a "atitude" ligada a esses valores de consumo. Esse sentimento de pertencimento do adolescente sempre esteve atrelado ao ter ou isso é uma coisa mais recente?

É recente, mas não tanto quanto a gente imagina. Por exemplo, ser sócio de um determinado clube tem relação com pertencer a uma determinada classe econômica, ou frequentar tal escola, ir a determinadas festas. Sempre houve, para o jovem, a questão de pertencer a um grupo de pares. A questão é que hoje itens ligados ao consumo e, como você disse, tanto em relação a bens como atitudes, parece que têm sido decisivos para esses jovens. Nesse sentido, sinto muita falta de um trabalho crítico que poderia ser realizado pelas escolas. É menos difícil para a escola do que para os pais. Porque na juventude, na adolescência, já é a hora do jovem aprender a ter um espírito crítico, mas sem ajuda ele não consegue.


Estamos falando do papel dos pais, mas quais são os outros agentes sociais que poderiam contribuir para reverter esse quadro do consumismo?

Não sei se reverter, mas, pelo menos, oferecer o conhecimento necessário para que o jovem tenha liberdade de escolha. Creio que muitos jovens iriam escolher viver nesse mundo, mas, se ao menos ele soubesse que há outra possibilidade, seria uma escolha. Hoje, os jovens vão para esse mundo de consumir sem saber que eles poderiam fazer diferente. Um exemplo é a sexualidade – nos dias atuais, sexo é mais um bem de consumo. A minha geração tinha uma proibição de desfrutar da sexualidade e o jovem de hoje tem o dever. Então, tanto a proibição quando o dever são idênticos: não oferecem escolha. Eu acho que a escola é a instituição mais adequada para tratar da questão do consumo, primeiro porque crianças e jovens estão lá e, segundo, porque a escola é que tem o conhecimento necessário para passar para os alunos o que possibilita um pensamento crítico.

Que relação você enxerga entre o papel do consumo na vida dos adolescentes e a alta incidência de casos de bullying em escolas do Brasil e do mundo?


 
O crescimento do bullying é um retrato da nossa sociedade e isso não se restringe ao universo da criança e do jovem. Começa com o mundo adulto, e eles apenas refletem o que observam. As crianças e os jovens estão um tanto quanto abandonados pelos adultos, que estão sempre muito ocupados. Porque todo adulto é "jovem" hoje em dia e todo jovem tem seus sonhos, suas ocupações e não tem muito tempo de cuidar dos outros. E quem é que ensina aos jovens a conviver com a diferença? Ninguém. 

Você acha que existe relação entre consumo excessivo, valores materialistas e violência?

Eu não vejo uma influência decisiva porque não é só em relação ao consumo, mas também, e principalmente, em relação à diferença, qualquer que seja.

E quais são as diferenças mais decisivas?

Depende do grupo em que a criança está inserida, porque a diferença vai se relacionar a outros grupos. E a gente não pode considerar "a criança brasileira", há muitas diferenças. Se a gente pensar em um jovem vivendo na periferia, a diferença dele em relação a seus pares pode ser, por exemplo, ser estudioso e um bom aluno. Isso poderia motivar um bullying. Para um jovem de classe média, poderia ser não ter um celular. Mas não é só relacionado a consumo.


Há um distanciamento cada vez maior entre pais e filhos? 

Eu não falei de distanciamento entre pais e filhos porque nunca os pais estiveram tão próximos dos filhos. Principalmente porque é todo mundo jovem, tanto a criança quanto o adulto.

Esse diálogo é de igual para igual? 

É de igual para igual. Os pais tratam os filhos, independentemente da idade que eles tenham, como se fossem seus iguais, e os filhos tratam seus pais dessa maneira. Isso significa que a criança é levada a um patamar que ela não alcançou ainda e o adulto é rebaixado. 

E quais são os pontos negativos dessa nova relação?

Há contradições muito grandes nesse tipo de relação. Os pais nunca estiveram tão próximos dos filhos, porque brincam com os filhos, fazem programas, ouvem e acatam muito do que eles dizem. Isso é uma proximidade. Agora, se ela vai ser boa ou não, vamos ter que esperar uns 20 ou 30 anos para ver. O ponto negativo que me chama atenção é que a infância vem desaparecendo e o mundo adulto também. Outro dia eu vi uma mulher entre 30 e 35 anos com a filha, que devia ter entre 5 e 7. A menina estava vestida como uma mulher, com uma roupa bem erotizada, sandálias de salto. A mãe estava de calça jeans e tênis e carregava uma sacola que tinha um ursinho pendurado. É uma fotografia do mundo atual: a criança adultizada e o adulto infantilizado.


Você tem feito uma reflexão de como o mercado tem tratado essa questão?

Trata de acordo com seus interesses, que é vender cada vez mais. Outro dia eu comentava sobre isso em uma palestra para pais e eles ficaram surpresos quando se deram conta. A função original da publicidade de um carro, por exemplo, ficou perdida. Hoje, quando assistimos a uma peça publicitária de carro, não queremos comprar apenas o carro. Queremos comprar o carro porque parece que junto vem aquele estilo de vida: jovens aventureiros que andam naquele carro que tem até dispositivo para distrair o filho. A publicidade está completamente antenada com os anseios, que são comprar um estilo de vida e não um carro. O que existe hoje é um adulto com espírito jovem e que está disposto a ter visibilidade social.

Você acha que os pais têm consciência do impacto que esse tipo de mensagem mercadológica tem no desenvolvimento de crianças e adolescentes? 


Eu acho que não. Ou às vezes tem, mas não conseguem encontrar alternativas para escapar disso. Eles são muito sozinhos, e não há quem ajude os pais. Ao contrário, tem um monte de especialistas como eu dizendo para nos pais que não está certo, que isso não é legal. Aí eles ficam "e agora?", porque eles vivem nessa sociedade que tem esses valores. 

Uma das grandes preocupações dos pais com relação aos filhos é a questão da alimentação. Como os pais têm lidado com isso?

A preocupação é comprar alimento para o filho. Depois da revolução feminista, que começou com mais força na década de 1960, parece que a cozinha virou um local não grato para algumas mulheres. Muitas não conseguem pensar que cozinhar é um ato de amor – e eu até escrevi sobre isso. Acham que alguém cozinha para elas enquanto elas brincam com os filhos. A última pesquisa que eu li, e que me deixou muito surpresa, foi de que bebês a partir de quatro meses já comem comida pronta congelada. O que há por trás disso? Há, é claro, a venda de uma imagem de que a mulher tem outras coisas para fazer do que ficar cozinhando. É vender um estilo de vida que ela tem que ter o lazer, tem que brincar com o filho, tem que ter uma carreira profissional e não pode "perder" tempo cozinhando.  Há também a venda de um estilo de vida prático. 


Essas mudanças sociais e as transformações do núcleo familiar, com pais que trabalham muito e fora de casa, têm impacto no desenvolvimento infantil?

Eu não gosto muito dessa ideia de que hoje os adultos trabalham mais. Eles trabalham com mais "voracidade" talvez. Mas os adultos sempre trabalharam, a mulher já trabalha no mercado remunerado desde a 2ª guerra. Há 60 anos minha mãe já trabalhava. O que temos hoje é um estilo de vida urbano que faz com que gastemos muito tempo em coisas inúteis, como trânsito, por exemplo. Cada vez maiores são os carros e cada vez mais apertado é o trânsito!

Eu acho que hoje os pais têm o mesmo tempo que sempre tiveram para os filhos. Mas não é um tempo de pai e mãe dedicado ao filho, é um tempo de um adulto muito jovial que, independentemente da idade, quer conviver com os filhos sem ter que mandar. É um pai não quer ter dissabor, não quer perder a roda de cerveja com os amigos. Há pouca disponibilidade e não pouco tempo.

Seria interessante lembrarmos de um fenômeno mundial que é o esquecimento de crianças dentro do carro. Isso talvez seja a tragédia do nosso tempo, onde o adulto pensa primeiro em si e só depois nos filhos. 


Essa busca dos adultos pela juventude parece ser uma questão recorrente para você. Você tem se debruçado sobre esse tema?

Eu tenho trabalhado em torno de alguns eixos, que são os eixos estudados pelos pensadores da pós-modernidade que tratam do consumo, da busca pela juventude eterna e da felicidade a qualquer custo.

Qual a relação entre todas essas questões? Elas nasceram junto na sociedade de consumo, não? 

Sim, nasceram juntos porque tudo depende de um conjunto. Uma pessoa para querer ser jovem comprou essa ideia de algum lugar, e tudo está ligado ao consumo. Mas é preciso enfatizar que, quando falamos em consumo, é necessário considerar que não se trata apenas a compra de bens, mas também da "compra" de ideias, de conceitos. 

Qual a sua opinião sobre as mensagens que são transmitidas pelos meios de comunicação de um modo geral, que influência eles exercem no desenvolvimento das pessoas e na convivência familiar?

Têm a força e a influência que cada um de nós permite que tenha. Eu acho incoerente os pais dizerem que "tal" programa é ruim, que o comercial "tal" é ruim. São eles que enchem a casa de televisão. Tem na sala, no quarto do filho, na cozinha. Então, não adianta reclamarmos de uma influência quando somos nós que damos o poder a ela. Se diminuísse o número de TVs em casa, diminuiria a influência, começa por aí. Tem uma grande influência hoje porque nós decidimos que tivesse.

 
Tirando a responsabilidade dos pais que seria de diminuir esse impacto. Qual a responsabilidade das mídias e das empresas de modo geral com relação a essa questão do consumo excessivo?

Eu não credito a eles responsabilidade nenhuma. Porque eles estão no ramo deles e têm que fazer o que eles fazem. A questão é que nós temos nos colocado passivamente frente ao que eles nos apresentam.

 

 

https://www.alana.org.br/CriancaConsumo/NoticiaIntegra.aspx?id=7274&origem=23